A moradora em questão é Margarida Bonetti, que vive – ou vivia – ali em condições precárias há cerca de vinte anos depois de fugir de Washington (EUA), para onde tinha se mudado com o marido, Renê Bonetti, no fim da década de 1970. A curiosidade sobre o caso fez com que o casarão virasse ponto de visitação na capital paulista e levantou boatos sobre uma nova fuga de Margarida, ainda sem confirmação.
O casal foi acusado pelo FBI de torturar, negar tratamento médico e manter em cárcere privado uma mulher trabalhando como empregada doméstica em condições análogas à escravidão durante duas décadas. Renê foi preso. Ela escapou de volta ao Brasil.
Para além do caso chocante e da personagem excêntrica – que se escondeu num casarão sem saneamento, usa sempre uma pomada branca no rosto e, neta do Barão de Bocaina, pertence a uma das mais ricas famílias paulistas – a história revela a ponta do iceberg de uma realidade ainda existente no país.
Em 19 anos, 2.330 mulheres resgatadas
Desde 1995, foram resgatadas 57,6 mil pessoas da escravidão contemporânea no país. Os dados, que são da Divisão de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho e Previdência, evidenciam que, mais do que simplesmente carregar a herança de ser o último país do Ocidente a abolir a escravidão, o Brasil segue reproduzindo essas práticas cotidianamente.
A partir de 2003, o Estado passou a pagar seguro-desemprego para as pessoas resgatadas e, assim, se criou uma base de dados mais robusta. De lá para cá, 2.330 mulheres foram encontradas trabalhando em condições análogas à escravidão. Destas, 61% delas declararam ser negras, 36% nasceram no Nordeste e 56% eram iletradas ou tinham menos que cinco anos de estudo.
Trabalhos em casa – como cozinha, limpeza, cuidado com idosos, crianças e animais – configuraram a segunda principal atividade que estas mulheres foram obrigadas a fazer, ficando atrás apenas da agropecuária.
Conforme explica a auditora-fiscal do trabalho Teresinha de Lisieux, o trabalho doméstico é aquele prestado para uma pessoa ou família e que não tem fins lucrativos, com pessoalidade e subordinação. Ele se torna análogo ao escravo quando a trabalhadora deixa de receber direitos, tais como carteira assinada, salário, férias e descanso semanal.
Nesses casos, Lisieux descreve como, via de regra, “a trabalhadora é submetida a jornadas de trabalho abusivas, lida nos três turnos sem hora para começar e terminar. A qualquer hora está à disposição da família, incluindo os finais de semana e feriados.”
Além disso, como aconteceu no caso que envolve “a mulher da casa abandonada”, a trabalhadora geralmente “é isolada socialmente, não tem contato com familiares e não tem amigos, sua vida orbita em torno da vida da família, que geralmente justifica o abuso dizendo que ela é ‘como se fosse da família’”, relata Teresinha.
A invisibilidade do trabalho doméstico
Liane Durão, auditora-fiscal do trabalho e coordenadora de combate ao trabalho análogo ao de escravo na Bahia, observa que, entre trabalhadores resgatados, aqueles em atividades domésticas são os que ficam mais tempo em condição de exploração.
Isso, evidencia, diz ela, que essas explorações não estão sendo iniciadas agora. “Esses casos de exploração da trabalhadora doméstica ocorrem desde a época da escravidão, não tendo sido cessados com a promulgação da Lei Áurea. Em verdade, trazem sim muitos traços da época em que a escravidão era permitida”, aponta.
“Entretanto, estes casos estavam invisíveis – para a sociedade e para a inspeção do trabalho”, salienta. O primeiro resgate deste tipo foi feito em 2017 e até 2020, 12 pessoas haviam sido retiradas dessa condição.
Para Liane, alguns fatores podem ter contribuído para essa invisibilização. Um deles é a persistente naturalização, por parte da sociedade, de violações básicas a quem trabalha no âmbito doméstico. Outro, sintomático deste primeiro, é o tardio reconhecimento dos direitos trabalhistas para essa categoria: a profissão de empregada doméstica foi regulamentada apenas em 2015, por meio da Lei Complementar 150.
Soma-se a isso o fato de que não havia ações fiscais permanentes de combate à exploração específica do trabalho doméstico. Uma coordenação com olhar para este trabalho foi institucionalizada no fim de 2021.
Foi no fim de 2020 que um caso mudou a história do combate ao trabalho doméstico análogo ao de escravo no Brasil. O resgate da trabalhadora doméstica Madalena Gordiano em Patos de Minas (MG), que foi obrigada a trabalhar para a família Rigueira dos oito até os 46 anos, ganhou muita repercussão. Do Fantástico da rede Globo até a imprensa internacional, a divulgação da história fez crescer o número de denúncias. Se nos quatro anos anteriores, 12 trabalhadores domésticos foram resgatados, de 2021 para cá foram 35.
No primeiro semestre de 2022, 5 pessoas em trabalho doméstico análogo ao de escravo foram resgatadas; em 2021 foram 30 / Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT)
“É como se fosse da família”
São muitos os episódios recentes no Brasil. Um exemplo é o caso de uma mulher de 57 anos resgatada neste último fevereiro, depois de quase quatro décadas, em Campina Grande (PB). Além do cuidado com a casa e os patrões, ela era responsável por ao menos 100 cachorros.
Outro caso é o de uma mulher de 84 anos que forçadamente trabalhou como doméstica para três gerações de uma mesma família carioca, que foi resgatada em maio. Esta foi considerada a mais longa exploração de escravidão contemporânea – durou 72 anos – registrada no Brasil desde a criação do sistema de fiscalização.
Mas outro episódio recente ganhou menos repercussão. No último 16 de maio, uma trabalhadora doméstica, submetida a condições análogas à escravidão por 43 anos, foi resgatada na casa de um bairro nobre de Recife. Aos 11 anos, seu pai a entregou a esta família, em troca de dinheiro.
Teresinha de Lisieux participou do resgate. “Ela era uma espécie de ‘patrimônio’ da família e, na ausência dos patrões, ia passar a morar com um dos filhos’, relata a auditora-fiscal. Os documentos da trabalhadora ficaram em poder da empregadora, dificultando que ela fosse embora.
‘Teve sua vida e consequentemente seus sonhos roubados. Nos disse que adora shopping, mas não gosta de ir por não poder comprar nada. O que recebia era em torno de R$4 para tomar um sorvete ou uma água de coco, conta Lisieux.
De acordo com a Superintendência Regional do Trabalho em Pernambuco (SRTb/PE), os patrões, ao serem indagados, disseram não considerar ser necessário o pagamento de salário porque criaram a trabalhadora “como se fosse uma filha”, ainda que ela tenha estudado em escolas públicas e os filhos do casal, em colégios particulares.
Atualmente, a trabalhadora – que foi diagnosticada com transtornos psiquiátricos – está recebendo as três parcelas de seguro-desemprego, terá direito a uma indenização da família no valor de R$250 mil e foi acolhida por sua irmã, com quem mora.
Com as fortes chuvas que afetam Pernambuco desde o fim de maio e que mataram ao menos 122 pessoas, as irmãs foram duas das milhares de pessoas desabrigadas pela inundação da casa. Apoiadas por familiares, conseguiram voltar à residência depois de cerca de 20 dias.
“Estas trabalhadoras são geralmente mulheres e negras, originárias de famílias que vivem na extrema pobreza que, apesar de terem laços recheados de afeto, são afastadas do seu núcleo familiar por uma necessidade de sobrevivência”, descreve Teresinha, para quem o cenário “é reflexo da não transferência de renda, falta de acesso à escola, ao trabalho digno, feridas abertas ainda no Brasil-colônia.”
Para Lisieux, uma das características “desumanas” do trabalho doméstico análogo ao de escravo é a “pseudorrelação de afeto que mascara a exploração laboral”: “Com a cortina do ‘como se fosse da família’, pessoas com uma mentalidade escravocrata retiram das outras a possibilidade de existir”.
“A divulgação destes abusos”, defende Teresinha, é passo fundamental para que a sociedade se posicione, “para que este tipo de relação onde se subjuga o outro não tenha mais nenhum espaço”.
Fonte : Brasil de Fato / Edição: Thalita Pires