Uma prática que atraiu mais de 400 mil brasileiros em São Paulo — muitos deles moradores da periferia — foi interrompida pela Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD). O projeto World, que pagava cerca de R$ 600 em criptomoedas para quem aceitasse registrar sua íris, foi proibido de remunerar participantes a partir deste sábado (25). Mas o que está por trás desse sistema e por que ele preocupa especialistas?
World não poderá mais remunerar quem topar ter a ‘impressão digital’ ocular registrada. Afinal, o que é feito com os dados e por que iniciativa levanta preocupações? – Imagem: Reprodução
O que é o projeto World ?
A World utiliza uma tecnologia que transforma a íris em uma espécie de “impressão digital” avançada. Segundo a empresa, isso ajudaria a diferenciar humanos de robôs em ambientes digitais. No Brasil, a operação é conduzida pela Tools for Humanity, organização ligada ao bilionário Sam Altman, criador do ChatGPT.
Embora o projeto esteja ativo em 18 países, São Paulo foi a única cidade brasileira onde o escaneamento da íris era oferecido até o momento. Desde o final de 2023, a iniciativa migrou de bairros nobres, como Itaim Bibi, para regiões periféricas, como Brasilândia e Cidade Dutra. A localização estratégica próxima a estações de metrô e terminais de ônibus contribuiu para o crescimento rápido da adesão.
Por que o governo se meteu ?
A ANPD determinou a suspensão do pagamento, alegando que ele pode comprometer o consentimento livre dos participantes, especialmente em regiões vulneráveis. Segundo especialistas, muitas pessoas não compreendem o destino de seus dados nem os riscos envolvidos.
“Eu vim pelo dinheiro mesmo. Estou duro. Mas nada é de graça, né?”, afirmou Alex Rodrigo, 38 anos, um dos participantes entrevistados. O depoimento reflete a desinformação sobre o funcionamento do protocolo World e levanta questionamentos sobre a clareza nas informações oferecidas pela empresa.
Dados e privacidade: o que acontece com a sua íris?
Quando alguém participa do projeto, as fotos da íris são transformadas em um código criptografado, armazenado em servidores descentralizados. A empresa garante que os dados são divididos em fragmentos e mantidos por parceiros, como universidades estrangeiras. No entanto, especialistas apontam que os termos de uso são vagos e podem até ser considerados abusivos pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
A advogada Patrícia Peck, especialista em direito digital, destaca que o app da World apresenta informações pouco claras e mistura idiomas, dificultando a compreensão por parte do usuário comum. Já Rafael Zanatta, diretor da organização Data Privacy Brasil, avalia que a falta de transparência pode configurar uma violação da LGPD.
World não poderá mais remunerar quem topar ter a ‘impressão digital’ ocular registrada. Afinal, o que é feito com os dados e por que iniciativa levanta preocupações? – Imagem: Reprodução
Por que a World investe tanto nisso?
Embora os registros da íris sejam apagados após a codificação, o objetivo da World é construir uma infraestrutura global de autenticação que, no futuro, pode ser vendida a empresas e governos. Redes sociais, bancos e aplicativos podem adotar a tecnologia para prevenir fraudes, como o uso de bots e deepfakes.
“O projeto está criando a solução antes da demanda surgir. Quando o mercado estiver pronto, a World terá uma base de dados vasta e operacional”, explica Rodrigo Tozzi, gerente da Tools for Humanity.
Debate ético e impacto social
A coleta de dados biométricos de pessoas em situação de vulnerabilidade social gerou forte reação. Para a pesquisadora Yasmin Curzi, da Universidade de Virgínia, “o corpo humano não pode ser mercantilizado, especialmente em contextos de desigualdade econômica”.
Mesmo com garantias da empresa sobre segurança e anonimato, o histórico de termos abusivos e a falta de fiscalização em países emergentes como o Brasil colocam o projeto sob escrutínio. No ano passado, a World foi multada na Argentina por práticas consideradas abusivas.
O futuro do projeto no Brasil
Com o crescimento meteórico em São Paulo, a Tools for Humanity já planejava expandir o escaneamento da íris para outras regiões do país. Porém, a decisão da ANPD representa um obstáculo significativo.